terça-feira, 20 de julho de 2010

INCLEMÊNCIA

A brisa suave beijava-lhe a face com tamanha delicadeza que a acordava com o mais belo sorriso, como se estivesse vivendo em um sonho encantado. Mas nem sempre aquela brisa afagava-lhe as faces, pois ocasiões havia em que aquela pobre menina era açoitada sem clemência pelos ventos de inverno, que traziam consigo a chuva, a desolação, o medo.

Desde que a pequenina veio ao mundo não conheceu outro lugar a não ser a rua. Ela nunca soube o que é ter um verdadeiro lar protegido contras as intempéries, contras as artimanhas da vida na rua, contra a brutalidade que endurece os corações.

Não havia um dia em que nossa pequena não dormisse em baixo do viaduto, às vezes muito cedo, quando o sol ainda se punha, para esquecer a fome no meio de sonhos alegres e coloridos. No entanto, com os primeiros raios do sol ela acordava, desejando apenas um pedaço de pão dormido para saciar a fome que a devorava por dentro. Era aí que começava a jornada daquela garota, que de porta em porta, nos sinais de trânsito ou no meio de mercados públicos, buscava a clemência de alguém que a tirasse das masmorras da fome. – Moço me dá um dinheirinho pra eu comprar um pão? – Não tenho! A maioria das pessoas com as quais a pequena se deparava lhe negava a realização do sono às vezes tão quimérico.

Mas a pequena era forte e sabia esperar o tempo que fosse, mesmo que chegasse a hora de recolher-se ao seu estimado viaduto.

Em uma de suas jornadas diárias em busca da misericórdia de alguém, a jovem sofreu um mal súbito quando atravessava uma avenida, o que quase lhe custou a vida, pois fora atropelada por um carro que ignorava a presença da jovem ao chão.

Ao acordar no hospital sem saber como chegara ali, ela perguntou a enfermeira: - Moça porque estou aqui, não me lembro de nada? E a enfermeira pouco afeita àquela criaturinha suja e maltrapilha apenas respondeu: - Você foi atropelada!

A tristeza pela a certeza da desolação em que vivia e da incompreensão das pessoas que a rodeavam levou a pequena desacreditar na vida e no seu sonho diário de um pão dormido. Desde então nada a fazia levantar do seu leito de miséria, nem mesmo a fome que a corroía aos poucos tirando-lhe a vida. Nestes dias de desolação e esquecimento a garota apenas rogava aos céus que a levassem dali para o lugar de seus sonhos, onde a fome nunca a incomodaria.

Sua visão já estava turva e as imagens que via eram como espectros de um pesadelo insone. A sede e a fome misturavam-se numa dor que consumia suas forças. Não conseguia mais se levantar e lutar pelo resto de vida que tinha.

Os cachorros da rua, como urubus, rodeavam a pequena a espera do momento em que se banqueteariam. O que aconteceu quando o último fôlego de esperança esfumaçou-se na podridão do seu lar.

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