quarta-feira, 5 de maio de 2010

O fardo da sede (Parte III)



O maior empecilho com esse modelo é que surgem problemas técnicos tão logo os grupos que os construíram vão embora. Às vezes usa-se uma tecnologia que não pode ser consertada no local ou cujas peças avulsas para reparos estão disponíveis apenas na capital. Outras razões são dolorosamente triviais: os habitantes das aldeias não conseguem levantar dinheiro para comprar uma peça de 3 dólares ou não acham ninguém de confiança para comprá-la com seus fundos comunais. A pesquisa de 2007 no Konso apontou que somente nove projetos, de um total de 35, se acham em funcionamento.

Uma organização sem fins lucrativos baseada no Reino Unido chamada WaterAid (algo como Pró-Água) está assumindo a tarefa de levar água às mais esquecidas aldeias do Konso. À época da minha visita, a WaterAid havia recuperado cinco projetos e criado comitês nas aldeias para manejá-los, e já trabalhava para reavivar outros três. No centro de saúde da capital do Konso, a ONG instalou calhas nos tetos inclinados das construções para conduzir a água da chuva até um tanque coberto, onde está sendo tratada, para depois ser usada no centro de saúde.

A WaterAid também atua em aldeias como Foro. A abordagem deles combina tecnologias que se provaram duradouras - tais como construir um dique de areia para capturar e filtrar a chuva que, de outra maneira, se perderia - com novas ideias, a exemplo da instalação de banheiros capazes de gerar gás metano para uma cozinha comunitária. Mas a real inovação é que a WaterAid trata a tecnologia apenas como parte da solução. Tão importante quanto ela é o envolvimento da comunidade no planejamento, na construção e na manutenção de novos projetos para a água. Antes de começar cada um, a organização pede à comunidade que constitua um comitê Wash (sigla de water, sanitation, hygiene - "água, saneamento, higiene") com sete membros, dos quais quatro têm de ser mulheres. O comitê trabalha com a WaterAid no planejamento dos programas e envolve a aldeia em sua construção. Em seguida, mantém e toca o projeto.

O povo do Konso, que cultiva suas plantações em terraços arduamente escavados nas encostas das montanhas, é famoso por sua capacidade de trabalho árduo e se constitui em um trunfo na luta pela água. Na aldeia de Orbesho, os residentes construíram até uma estrada por conta própria para que as máquinas de perfuração pudessem chegar ali. No verão passado, a bomba deles, na margem do rio, estava sendo dotada de um motor para puxar a água fluvial até um reservatório no topo de uma montanha vizinha. Dali, por gravidade, a água descerá pelos dutos até as aldeias do outro lado da montanha. Os nativos contribuíram com alguns centavos por cabeça para ajudar no custeio, produziram concreto e coletaram pedras para as estruturas. Agora, estão cavando valas para a fixação dos dutos.

Se instalar uma bomba-d'água é um desafio técnico, estimular a higiene é um desafio de outra natureza. Wako Lemeta é um dos dois fomentadores de higiene treinados pela WaterAid em Foro.

Lemeta, tímido, para na casa de Aylito Binayo e pede permissão ao marido dela, Guyo Jalto, para checar seus galões. Jalto leva-o até a palhoça onde eles são guardados. Lemeta abre a tampa de um deles e cheira, balançando a cabeça em aprovação - a família está usando WaterGuard, um aditivo à base de cloro. Uma tampinha cheia do produto purifica um galão de água. O governo passou a distribuir WaterGuard logo no começo da mais recente epidemia de diarreia. Lemeta também verifica se a família possui uma latrina e fala aos moradores sobre as vantagens de ferver a água de beber, lavar as mãos e banhar-se duas vezes por semana.

Muita gente já abraçou os novos hábitos. Pesquisas mostram que o uso da latrina subiu de 6% para 25% na área desde que a WaterAid começou a atuar, em dezembro de 2007. Mas é uma luta. "Quando eu lhes digo para usar sabão", explica Lemeta, "eles costumam responder: ‘Dê-me o dinheiro pra comprar o sabão'."
Barreiras similares precisam ser superadas para manter o programa ativo depois que o grupo auxiliar se vai. A WaterAid e outros grupos bem-sucedidos acreditam que cobrar uma tarifa dos usuários - em geral 1 centavo de dólar por galão (3,78 litros) de água ou menos - é fundamental para sustentar um projeto. O comitê Wash da aldeia encarrega-se da coleta de dinheiro para financiar peças sobressalentes e consertos. No entanto, os moradores ainda pensam na água como uma dádiva divina. Depois vamos ter de pagar também pelo ar que respiramos?, parecem dizer.

Faz muito tempo que água e dinheiro formam uma mistura problemática. Em 1999, a Bolívia outorgou a um consórcio multinacional os direitos de prover serviços de água e saneamento à cidade de Cochabamba por 40 anos. Os protestos que se sucederam contestando os preços altos acabaram por expulsar a companhia, atraindo as atenções para os problemas acarretados pela privatização da água. Companhias multinacionais encarregadas de gerir sistemas públicos de água em bases lucrativas sentem-se pouco incentivadas a conectar lares rurais longínquos ou cobrar pela água um preço acessível aos pobres.

Mesmo assim, alguém tem de pagar pela água. Embora ela brote da terra, isso infelizmente não ocorre com tubulações e bombas. E costuma ser mais caro fornecer água justamente àqueles que menos podem arcar com seu custo - pessoas que moram nas aldeias remotas do mundo, sujeitas a secas e escassamente povoadas.

"A pergunta-chave é: quem decide?", diz Paul Faeth, da Global Water Challenge. "Em Cochabamba ninguém se comunicava com os mais pobres. O processo não era aberto ao público." Uma bomba-d'água em uma aldeia rural é outra história. "No âmbito local há uma conexão mais direta entre as pessoas que implementam o programa e a população que terá acesso à água."

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