quarta-feira, 5 de maio de 2010

O fardo da sede (Parte II)



O tempo é um luxo do qual Aylito não dispõe. Uma hora depois de nossa chegada ao rio, Aylito encheu dois galões - um para si, outro que eu deverei carregar para ela. Ela ata uma tira de couro ao meu recipiente e o coloca às minhas costas. Fico grata pelo couro macio da tira - a própria Aylito usa uma corda áspera. Mesmo assim, as tiras lanham meus ombros. Com dificuldade, chego à metade do caminho. Mas, quando a trilha se torna mais íngreme, não consigo ir em frente. Envergonhada, troco de galão com uma garota de uns 8 anos; o dela tem a metade do tamanho do meu. A menina enfrenta como pode o peso do galão maior, mas a cerca de dez minutos do topo o fardo torna-se demais para ela. Aylito pega o pesado galão da garota e o instala em suas próprias costas, em cima do que já carregava. Ela nos fuzila com seu olhar de desaprovação e segue montanha acima, agora com perto de 45 litros d'água às costas.

"Ao nascer, sabemos que vamos ter uma vida dura", diz depois, sentada à porta de uma cabana, diante da mandioca que seca sobre uma pele de cabra, segurando seu filho Kumacho. "Essa é a cultura do Konso desde muito tempo antes de nós." Ela jamais questionou essa vida, nunca esperou nada diferente. Logo mais, porém, pela primeira vez, as coisas vão mudar.

Quando você gasta horas carregando água por longas distâncias, você regula cada gota. O consumo diário per capita nos Estados Unidos é de 375 litros d'água, contra 132 litros por habitante no Brasil. Já Aylito se vira com apenas 9 litros. Persuadir as pessoas a usar a água para se lavar é bem mais difícil quando ela precisa ser carregada no braço montanha acima. E, no entanto, higiene e saneamento contam muito. Somente o ato de lavar as mãos já pode reduzir as doenças diarreicas em cerca de 45%. Aylito lava as mãos com água "talvez uma vez por dia", como afirma ela. Ela se banha apenas ocasionalmente. Uma pesquisa de 2007 levantou que nem um lar sequer do Konso dispunha de água e sabão (ou cinzas, um agente de limpeza razoável) para lavar as mãos perto de suas latrinas. A família de Aylito cavou recentemente uma latrina, mas não tem recursos para comprar sabão.

Boa parte do dinheiro da família vai para as consultas, que custam de 4 a 8 dólares na clínica de saúde do vilarejo, para tratar os meninos da diarreia causada por bactérias ou parasitas que eles contraem por falta de higiene e saneamento adequados. Na clínica, o enfermeiro Israel Estiphanos afirma que nas épocas normais 70% de seus pacientes sofrem de doenças transmitidas pela água; sendo que agora a região se vê em meio a uma epidemia particularmente severa.

A 26 quilômetros de distância, no centro de saúde distrital da capital do Konso, quase metade dos 500 pacientes tratados diariamente padecem de doenças transmitidas pela água. Mesmo assim, o próprio centro de saúde carece de água limpa. Nas paredes das salas dos funcionários veem-se pôsteres listando os princípios que regem o controle de infecções. Mas, "durante quatro meses por ano, desaparece a água que alimenta as torneiras", diz Birhane Borale, o chefe da enfermagem, de modo que o governo traz a água do rio em caminhão. "Usamos, então, só para dar de beber aos pacientes ou para que eles engulam a medicação", conta ele. "Temos pacientes com HIV e hepatite B. Eles sangram, e suas doenças são facilmente transmissíveis. Mas só podemos lavar os quartos uma vez por mês."

Mesmo o pessoal médico não tem o hábito de lavar as mãos entre as consultas, uma vez que só há torneiras funcionando em alguns poucos pontos do edifício. A enfermeira Tsega Hagos já levou um banho de sangue ao retirar um dreno intravenoso de um paciente. Mas, mesmo havendo água naquele dia, ela não lavou as mãos depois. "Só calcei outras luvas", diz. "Eu lavo as mãos ao chegar em casa, depois do expediente."

Trazer água limpa para perto da casa das pessoas é fundamental para reverter o ciclo de miséria. As comunidades em que a água limpa se torna acessível se transformam. Todas as horas antes gastas em busca da água podem ser usadas para produzir alimentos, criar mais animais ou mesmo iniciar negócios que gerem renda. As famílias já não tomam sopa de micróbios, perdendo, portanto, menos tempo com doenças. Mais importante, libertar-se da escravidão da água significa que as garotas poderão ir à escola e optar por uma vida melhor.

O acesso à água não é apenas um problema rural. Em todo o mundo em desenvolvimento muitos moradores de favelas urbanas gastam boa parte do dia em filas diante de uma bomba-d'água. Mas são enormes os desafios de se levar o líquido até as aldeias remotas, como as do Konso. Foro, a aldeia de Aylito, fica no alto de uma montanha. Muitas aldeias nos trópicos foram construídas no topo de colinas, lugares mais frescos e menos sujeitos à malária, além de ser mais fácil ver dali a aproximação do inimigo. Porém, as altas aldeias no Konso não dispõem de fácil acesso à água. As secas e o desflorestamento continuam a empurrar o lençol freático para baixo. Em algumas áreas do Konso ele fica abaixo de 120 metros da superfície. O melhor que se pode fazer em algumas aldeias é instalar um poço perto do rio. A água não ficará próxima, mas ao menos será mais constante, fácil de captar e com maior probabilidade de ser limpa.

Em muitas nações pobres, os poços seriam factíveis em um vasto número de aldeias e vilarejos. Mas perfurações profundas requerem conhecimento geológico, além de máquinas pesadas e caras. A água em muitos países, como na Etiópia, é responsabilidade de cada distrito, sendo que os governos locais possuem pouco conhecimento técnico ou dinheiro. "As pessoas que vivem em favelas e áreas rurais sem acesso à água potável são as mesmas que não têm acesso aos políticos", sustenta Paul Faeth, presidente da Global Water Challenge ("Movimento Global pela Água"), um consórcio de 24 ONGs baseado em Washington, capital dos Estados Unidos. Assim, o esforço para tornar acessível a água limpa recai em grande parte sobre esses grupos benemerentes com variado grau de sucesso.

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